O Código Civil brasileiro permite e facilita a prática de atividades perigosas mas, facilita também a concretização do direito da vítima, que obterá reparação de danos sem ter que provar a culpa do explorador da atividade. Artigo publicado na Tribuna do Norte de 28/02/2010, escrito pelo Professor Fernando Gaburri, da Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do RN -FARN, trata do assunto. Vejam o conteúdo na íntegra:
"O acidente em Boa Saúde
Fernando Gaburri - Professor da FARN
1. O acidente causado por explosão de fogos de artifício
Em 02.02.2010, no Município de Boa Saúde/RN (a cerca de 70km da capital Natal), ocorria o encerramento da festa em homenagem à Padroeira local, Nossa Senhora de Boa Saúde. Cerca de 5.000 pessoas acompanhavam os festejos, quando, por volta de 20h, um dos fogos de artifício lançados ao alto (uma girândola) não teria explodido no ar, como deveria, vindo a detonar no chão, atingindo 32 populares que ali se encontravam.
A explosão se deu próximo ao palanque onde se realizavam atos religiosos, contando com a presença de inúmeras autoridades, dentre as quais a governadora do Estado e alguns prefeitos municipais. Essa explosão causou danos de ordem material, moral e estética a pelo menos 3 dezenas de expectadores, levando um deles a óbito. Mas como será apurada a responsabilidade civil da pessoa jurídica empresária contratada para fazer a apresentação pirotécnica? É o que procuraremos responder a seguir.
2. O tratamento das atividades perigosas no Código Civil brasileiro de 2002
O inovador parágrafo único do art. 927 do CC/2002 prevê a responsabilidade objetiva (sem prova de culpa do agente causador do dano) quando a atividade, normalmente desenvolvida pelo autor do dano, por sua natureza, importar em risco para os direitos de outras pessoas. Essa regra cai como uma luva para a solução de eventuais demandas judiciais de reparação de danos, envolvendo situações tais quais a que aqui apresentamos.
A regra brasileira inspirou-se no art. 2.050 do CC italiano e no art. 493º, 2, do CC português.
O direito português já teve oportunidade de aplicar essa regra em um caso bastante semelhante ao ocorrido em Boa Saúde/RN. Em 13.08.1992, na romaria de São Bento da Porta Aberta, fogos de artifício lançados em homenagem ao Santo atingiram uma mulher que estava com a filha ao colo, sob um abrigo. Ficou decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça de Portugal que o lançamento de fogo de artifício é uma atividade perigosa, nos termos do art. 493º, 2, do CC de Portugal, semelhante ao parágrafo único do art. 927 do nosso CC.
O dispositivo do CC brasileiro traz uma cláusula geral de responsabilidade objetiva, que permite que atividades de risco sejam exercidas, porque úteis e interessantes à sociedade como um todo. Em compensação, aquele que exerce uma atividade de risco fica obrigado à indenizar os danos causados, ainda que inexista ilicitude no exercício daquela atividade.
3. O que distingue a nova teoria objetiva do CC/02 daquela já existente?
Em substância, não há diferença entre a já existente teoria objetiva, e aquela trazida pelo CC/02. O que ocorre é que agora passamos a ter duas bases legais para a responsabilidade objetiva:
a) nos casos especificados em lei: como já conhecíamos antes do CC/02, a regra sempre foi a da responsabilidade subjetiva (com culpa), exceto nos casos expressamente tipificados em lei, quando a responsabilidade será então objetiva. Todavia isso se dá em um sistema de numerus clausus, como se passa, por exemplo, com a tipicidade penal e tributária. Para explicarmos melhor este item, poderíamos adotar a seguinte fórmula: não há responsabilidade objetiva sem prévia previsão legal.
b) quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem: essa é uma cláusula aberta, que poderíamos comparar à relação entre a moldura e a tela. Essa cláusula geral funcionaria então como se fosse uma moldura dentro da qual podem se enquadrar vários tipos de atividades, tanto as já conhecidas, como as que no futuro se venha a conhecer.
Entendida a dinâmica da cláusula geral de responsabilidade objetiva por atividade de risco, resta-nos identificar o que se pode entender por “atividade de risco”.
4. O que se entende por atividade de risco?
Para se aplicar a nova teoria objetiva em relação às atividades de risco é necessário perquirir sobre o que vem a ser esse risco, noção bastante controvertida.
Na atualidade quase todas as atividades, como dirigir um automóvel ou operar uma máquina de cortar carne, implicam algum risco. Mas para a aplicação da teoria objetiva é preciso que o risco, objetivamente considerado, exceda os riscos normais a que cada um de nós estamos expostos.
Duas teses antagônicas se levantam, a do risco inerente e a do risco adquirido. Para a do risco inerente, o perigo é da essência da própria atividade. E para a tese do risco adquirido o perigo surgiria de algum defeito ou falta de zelo no exercício da atividade.
Para quem adota a tese do risco adquirido, a atividade cujo risco é de sua essência não poderia ser regida pela cláusula geral de responsabilidade objetiva, porque a causação de um dano não violaria nenhum dever de segurança. Já para os que adotam a tese do risco inerente, o que justifica a aplicação da cláusula de responsabilidade objetiva é unicamente a causação de um dano, independentemente de haver ou não violação de dever de cuidado. Em outras palavras, para o risco inerente, a atividade perigosa pode ser exercida de modo lícito que, havendo dano, fará com que seu explorador os repare.
Portanto, esse dispositivo inovador consegue equilibrar o direito ao desenvolvimento técnico, científico e artístico, com um mínimo de segurança à população, que é a certeza de que se alguém sofrer dano no exercício de uma atividade perigosa, porém lícita, será indenizado, sem que para tanto tenha que provar a culpa do causador do dano. A vítima, portanto, só precisa demonstrar a conduta (lançamento de fogos), o dano (ferimentos, dano estético e dano moral), e o nexo de causalidade entre ambos (que o dano resulta do lançamento dos fogos), para ter direito à uma reparação por dano material, e a uma compensação por dano estético e moral.
À guisa de arremate, podemos dizer que, ao mesmo tempo em que o direito permite e facilita a prática de atividades perigosas, facilita também a concretização do direito da vítima, que obterá reparação de danos sem ter que provar a culpa do explorador da atividade".
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